Deuses e Deusas Hindus

 

Swami Harshananda

 

Durga

Durga é, talvez, o aspecto mais abrangentemente adorado de Shakti. Todo um Purana, o Devibhagavatam , foi dedicado a Ela. Um outro trabalho, mais conhecido do que o Devibhagavatam, é o Devimahatmyam, que contém praticamente o mesmo conteúdo, porém em uma forma mais concisa. Também é conhecido como Durgasaptasati ou Chândi, e forma uma parte de um outro conhecido Purana, o Markandeyapurana.  Este trabalho é tão altamente venerado, que cada verso dele é considerado como um mantra (fórmula sagrada) de Devi, e acredita-se que sua repetição confere quaisquer dádivas que seja pedida em oração.

Literalmente, “Durga” significa aquela que é difícil de ser abordada, ou difícil de conhecer. Sendo a personificação da totalidade dos poderes dos deuses, é naturalmente difícil abordá-la e conhece-la. No entanto, sendo a Mãe do universo, Ela é a personificação do amor terno, quando suplicado.

De todos os aspectos de Shakti tratados neste livro, o primeiro é Yoganidra (meditação-sono). Ela é o poder do sono, cujo recurso foi tomado pelo Senhor Vishnu, que descansa entre dois ciclos da criação. Ela é louvada como a responsável pela criação, sustentação e recolhimento do universo.  Ela é o poder misterioso, a personificação do conhecimento, da sabedoria e da memória. Ela é agradável e bela. Ao mesmo tempo  Ela também é terrível. Esta combinação de qualidades opostas é possível apenas a Ela. Ela é descrita como brandindo diversas armas como o arco, a flecha, a espada, o disco e o tridente.

O próximo aspecto é chamado Mahishasuramardini, a deidade que tomou forma como resultado da união dos poderes de todos os deuses, que foram oprimidos pelo demônio Mahishasura. Vishnu, Shiva e Brahma ficaram raivosos ao ouvir sobre todas as más ações de Mahishasura e (criaram) Devi, que nasceu de sua cólera, seguida da raiva das divindades menores. Os poderes desses deuses formaram seus membros e a réplica exata de suas armas, formaram o arsenal de Devi. Armada com essas armas formidáveis e montada em um leão feroz, Ela  desafiou Mahishasura e o destruiu, assim como ao seu exército.

Essa estória é acompanhada por um primoroso hino, que combina em si mesmo tanto excelência poética, quanto fervor devocional e penetração.

Ela  é o poder inexcrutável, que permeia e energiza todo o universo. Ela é a personificação de toda riqueza, poder, beleza e virtudes. Ela é a corporificação de Yajña (sacrifício), Paravidya (o mais alto conhecimento no que se refere ao espírito), assim como Aparavidya (conhecimento das ciências seculares).É Ela que concede riqueza – tanto material, quanto espiritual –, dissipa as dificuldades e aniquila o mal. Sua beleza, assim como seu valor são incomparáveis.

Os deuses não puderam desfrutar de sua liberdade por muito tempo. Muito rapidamente, eles foram dominados pelos demônios Sumbha e Nisumbha. Então eles tiveram que correr para os Himalaias e suplicar novamente para Devi.  O hino, bem conhecido como Aparajitastrota, louva-A como a Invencível. Sua imanência  em  todos os seres vivos  é  o principal tema  do hino.  Os poderes e atividades de  todos os seres são manifestações apenas do Seu poder.

Em resposta a essa oração, Ela se manifestou como Kausiki Durga, emanando do corpo de Parvati, que se tornou Kali – aquela que é  escura, após esta manifestação.

A beleza fascinante de Durga atraiu a atenção de  Sumbha e Nisumbha, que mandaram propostas de casamento através de um servo. Infelizmente para eles, em um momento de “fraqueza e insensatez”, Ela prometeu casar-se apenas com aquele que a derrotasse em uma batalha. Todas as tentativas de derrubá-La forçosamente, resultaram em desastre para os demônios. Cabeças rolaram, a intervenção  de gigantes como Dhumralocana, Canda, Munda e Rajktabija não vingou. Kali, a Deusa negra aterrorizante, que emergiu da fronte de Devi, degolou Canda e Mumda e ganhou o nome de Camunda para si. Apenas a batalha com Raktabija necessitou prolongados esforços especiais de Devi, uma vez que ele tinha o misterioso poder de se multiplicar através das gotas de sangue espalhadas na batalha. Mesmo Saptamatrkas, que surgiu de seu corpo na batalha,  pareceu de pouca ajuda. Foi Kali que conseguiu esticar sua extensiva língua e beber todo o sangue que jorrava de Raktabija, assim prevenindo a emergência de mais demônios e permitindo que Durga o exterminasse. O resto foi fácil. Nisumbha foi facilmente morto depois de uma luta ridícula. Sumbha, que se sentia exasperado, a acusou de pedir ajuda a “outros”. Rindo zombeteiramente, Devi recolheu todas as suas manifestações e emanações para dentro de si mesma, mostrando que Ela sempre foi Uma sem segundo. Na batalha seguinte, Sumbha – o senhor dos demônios, foi facilmente morto e conseqüentemente dominado pelos mundos de grande terror.

Isto é seguido por um outro pedaço de oração, um hino poético encantador, que é tão simples, quanto elegante. Conhecido como “Narayanistuti”, ele começa com um apelo fervoroso dos deuses agradecidos à Mãe para que Ela fosse benigna e graciosa. O hino a descreve como a soberana e Mãe de toda a criação. Ela é o universo físico. Ela é o poder misterioso de Vishnu (Vaisnavisakti), a causa original, assim como o poder que ilude os seres. È apenas através do agrado a Ela que se pode receber emancipação espiritual. Todas as artes, as ciências e o sexo feminino são manifestações dEla. Ela reside como o intelecto no coração dos seres humanos. Ela é o tempo todo-voraz. Ela é a personificação de tudo o que é bom e auspicioso. Ela está sempre engajada em proteger seus filhos. Os Saptamatrkas são verdadeiramente seus aspectos. Kali, a terrível, com uma guirlanda de crânios em volta de seu pescoço, também é outro de seus aspectos. Quando agradada, Ela pode remediar todas as doenças. Se desagradada, Ela pode destruir tudo o que amamos e gostamos de possuir. Seus devotos estão sempre livres de problemas. Ela é a Verdade Suprema descrita em todas as escrituras.

O trabalho também descreve suas outras manifestações como Vindhyavasini (aquela que vive nas montanhas Vindhyas), Raktadanta (de dentes vermelhos), Sataksi (de cem olhos), Sakambhari (mantenedora dos vegetais), Durga (assassina do demônio Durgama), Bhima (a terrível) e Bhramari ou Bhramaramba (a que tem a forma das abelhas).

Devi, como retratada neste trabalho, possui três manifestações principais: Mahakali, Mahalaksmi e Mahasarasvati. Tais aspectos não deveriam ser confundidos com as divindades PauranicasParvati, Lakshmi e Sarasvati. Elas são, na verdade, as três manifestações maiores do Uno Poder Supremo – Mahesvari, de acordo com os três gunas (tamas, tajas e sattva).

A primeira, Mahakali, possui dez faces e dez pés. Ela é da cor do azul profundo, como a pedra Nilamani. Ela é adornada com ornamentos e empunha em suas dez mãos os seguintes objetos e armas: espada, disco, bastão, flecha, arco, bastão de ferro, lança, bodoque, cabeça humana e concha.  Sendo a personificação do aspecto tamásico de Devi, Ela é também a Yogindra, que fez dormir o Senhor Vishnu. É para Ela que Brahma  orou,  pedindo que Ela deixasse Vishnu para que ele pudesse destruir os demônios Madhu e Kaitabha.

Ela é a personificação de Maya, o misterioso poder do Senhor Vishnu. A menos que Ela seja agradada e voluntariamente se retire, o Senhor em nós não acordará e nem destruirá os poderes do mal que tenta nos destruir. Isto parece ser a significação da estória de Brahma, Madhu e Kaitabha.

Mahalaksmi, a segunda, o aspecto rajásico de Devi, é descrita como de cor vermelha como o coral. Ela segura em suas dezoito mãos o rosário, pote de batalha, bordão, lança, espada, escudo, concha, sino, copo de vinho, tridente, laço e o disco Sudarsana. Tendo nascido da combinação dos poderes e da cólera dos deuses, Ela é a personificação não apenas dos poderes, mas também da vontade de lutar contra as forças do mal. É por isto que Ela é mostrada como sendo de cor vermelha, a cor do sangue, a cor da guerra. É Ela que destruiu Mahishasura.

A estória de Mahishasura têm diversas implicações. Mahishasura, o ele-búfalo, representa a lei da selva, cujo poder é correto. Ele é a força bruta cruel, que não tolera qualquer oposição onde finalidades egoístas são consideradas. E ele obteve sucesso mesmo contra os deuses; mas apenas quando eles estavam divididos. Contudo, ele é derrubado diante da combinação dos poderes e da vontade de lutar, que é exatamente aquilo que Devi, Mahishasuramardini, representa. A lição desta estória no nível social é bastante óbvia para necessitar de uma explicação. Mas não podemos ignorar suas implicações sociais. No nível subjetivo, Mahishasura representa a ignorância e o egoísmo obstinado. Sua subjugação e conquista são possíveis apenas quando o sadhaka (aspirante espiritual) junta todas as suas energias e o combate com vontade tenaz. Uma vez que Deus ajuda àquele que  se ajuda a si mesmo, a intervenção do poder divino em seu favor está sempre lá.

Mahasarasvati é a terceira divindade representando o aspecto sáttvico de Devi. Ela é brilhante como a  lua de outono e possui oito mãos que seguram o sino, tridente, relha (de arado), concha, pilão,  arco e flecha. É Ela que se manifesta a partir da aparência de Parvati e por isso é conhecida como Kausiki Durga. Ela é a personificação da beleza e perfeição física. Ela é o poder do trabalho, ordem e organização.

A seção que lida com suas proezas é a mais longa. Dhumralocana, Canda, Munda, Raktabija, Nisumbha e Sumbha são os demônios chefes destruídos por Ela. Todos esses demônios conhecidos como asuras, são arquétipos das pessoas mais altamente egoístas que divertem-se em uma vida de prazeres do corpo e dos órgãos dos sentidos. Simbolicamente eles representam vários estágios e estados do egoísmo. Se Dhumralocana (o olho enfumaçado) representa o estado mais grosseiro da ignorância e do egoísmo, Raktabija representa um estado mais sutil, que multiplica-se a si mesmo e os nossos problemas! Enquanto Munda é o perfil baixo do nosso egoísmo (munda = low), Canda é o seu aspecto mais horrível (canda = feroz). Sumbha e Nisumbha significam mais os aspectos iluminados do egoísmo (Sumbha = brilhar).

Dhumralocana foi destruído por Hunkara através de uma mera carranca. Canda e Munda também foram manejados por Devi diretamente. Daí que Kali, a terrível, acabou com eles com uma ordem. Raktabija requereu uma atenção mais qualificada. A fonte de sua força foi destruída primeiro, antes de destruí-lo. Em relação a Nisumbha e Sumbha, a Devi foi obrigada a lutar com eles diretamente.

Estados mais baixos da ignorância e egoísmo como tipificado por Dhumralocana, Canda e Munda, deveriam ser destruídos por rajadas súbitas de energia e tratamento bruto. Estados mais astuciosos que resultam em multiplicação infindável de desejos  - é isto o que Raktabija significa – deveriam ser tratados taticamente, indo às suas raízes e suprimindo-os tão logo eles apareçam. “Egoísmo iluminado”, se se puder usar tal expressão, que é o egoísmo como um todo, necessita de uma luta direta. Pode ser que ocorra uma longa luta e a graça de Devi é absolutamente necessária para o sucesso.

Aspectos de Durga mencionados nos Puranas e Ágamas são legiões. Por exemplo: Sailaputri, Kusmanda, Katyayani, Ksemankari, Harasidhih, Vanadurga, Vindhyavasini, Jayadurga e daí por diante. Eles são de grande interesse da iconografia e dos suplicantes, que podem ter diferentes desejos satisfeitos através da adoração dos diferentes aspectos.

Imagens de Durga podem ter quatro, oito, dez, dezoito ou até vinte mãos. Os olhos são usualmente três. Os cabelos são arrumados como uma coroa (chamada Karandamukuta). Ela é graciosamente vestida com uma roupa vermelha e vários ornamentos. Entre os objetos em suas mãos, os mais comuns são – a concha, o disco, o tridente, oarco e a flecha, a espada, o punhal, o escudo, o rosário, o copo de vinho e o sino. Ela pode ser mostrada como estando em um lótus ou na cabeça de um búfalo ou ainda montada em um leão.

A  montaria do leão, a besta real, representa o melhor na criação animal. Também pode representar a avareza por comida e ainda a cobiça por outros objetos  de desfrute, que inevitavelmente levam à luxúria. Para se tornar divino (Devatva),  o ser deve manter seus instintos animais sob  controle completo. Esta parece ser a lição que podemos extrair da figura de Simhavahini  (o  montador do leão).

 

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